Estava eu no jardim brincando com meu netinho ...
- Goool! – grita o pequeno, entusiasmado. Mais uma vez, a bola acertara bem no cantinho da minha goleira improvisada – Está 10 a um, vovô! – vibra o garoto orgulhoso por estar derrotando o ancião da família. Eu, no alto dos meus 65 anos, divirto-me mas me sinto cansado devido ao esforço e às limitações físicas impostas pela idade "avançada". Mas não perco o rebolado e tento acertar a goleira dele mais uma vez.
- Isso não vai ficar assim, vou empatar! Pega essa!
Putz... meu chute foi totalmente impreciso e fraco. Algum tempo depois, a vantagem do meu neto só aumentara. Definitivamente, era chegada a hora de dar um tempo no jogo. - Vamos sentar um "bocadinho"? Vovô cansou... – sugiro.
O guri põe a bola embaixo do braço um pouco contrariado, talvez pensando que, dando uma trégua ao "humilhado" avô, o jogo pudesse recomeçar logo, logo. Sentou-se ao meu lado em silêncio, enquanto eu tentava recuperar-me do esforço, totalmente ofegante. Saquei da sacola os "apetrechos" do meu inseparável chimarrão e comecei a sorver, devagarinho, curtindo o líquido quente que saciava a minha sede e, aos poucos, recompunha minha sanidade física. Ficamos ali, em silêncio por alguns deliciosos instantes, quando o guri, com sua característica curiosidade, perguntou:
- Vovô, de onde veio o chimarrão?
A pergunta me surpreendera e, após pensar um pouco, recuperei, lá do baú da memória, a lenda do chimarrão. Comecei a narrar-lhe a história que eu ouvira há muitos anos atrás.
- A lenda da Erva–Mate conta que um velho guerreiro guarani vivia triste em sua cabana, pois já não podia mais sair para as guerras, nem mesmo para caçar e pescar. Ele vivia sozinho com sua linda filha, Yari, que o tratava com muito carinho. Yari jamais casara pois fazia questão de permanecer na casa do pai para melhor cuidá-lo e dedicar-lhe todas os cuidados e atenção.
Dei uma pausa nas palavras e, com inevitável satisfação, percebi que meu neto estava completamente compenetrado em cada sílaba que eu pronunciava. Crianças são assim, adoram ouvir uma história nova... Mais um gole de chimarrão e retomei, com entusiasmo, o relato que absorvia todos os sentidos da minha platéia solitária...
- Um dia, Yari e seu pai receberam a visita de um viajante que passava por aquelas bandas. Como era de costume, acolheram o andarilho para um pernoite na sua humilde cabana, dispensando a ele os melhores cuidados. A jovem cantou para que o visitante adormecesse e tivesse um sono tranqüilo, entoando um canto suave e triste. Ao amanhecer, o viajante confessou ser enviado de Tupã e disse que, para retribuir-lhes a hospitalidade, atenderia a qualquer desejo dos dois, mesmo o mais remoto. O velho guerreiro, sabendo que sua jovem filha não se casara para não abandoná-lo, pediu que lhe fossem devolvidas as forças, para que Yari se tornasse livre. O mensageiro de Tupã entregou ao velho um galho de árvore de Caá, ensinando-lhe a preparar uma infusão que lhe devolveria todo o vigor. Transformou, ainda, Yari na deusa dos ervais e protetora da raça Guarani, sendo chamada de Caá-Yari, a deusa da erva-mate. E assim, a erva foi usada por todos os guerreiros da tribo, tornando-os mais fortes e valentes. Quando os espanhóis por aqui chegaram, encontraram os índios guaranis dóceis e receptivos, já então utilizando uma bebida que sorviam em cabaças por meio de um canudo, preparada com folhas de uma árvore nativa da região – chamada cáa – dizendo que esta lhes havia sido dada pelo deus Tupã. De imediato, os espanhóis adquiriram o hábito e passaram a tomar o chimarrão, desde os soldados até os oficiais, sem distinção de classes sociais. E aqui, no Rio Grande do Sul, o tradicional chimarrão tornou-se um salutar hábito, símbolo da hospitalidade do gaúcho, que o oferece sempre a qualquer visitante. É bebido assim – mostrei-lhe a cuia – um uma cuia onde depositamos um pouco de erva-mate já moída e de onde sorvemos o líquido (água quente sem ferver), através de uma bomba de metal.
- Más vovô, isso se toma assim, segurando um guardanapo?
Interrompeu o garoto, com cara curiosa.
- Não, meu filho. Isso é uma outra história...
Enchi mais uma vez a cuia e, antes de retomar o relato, bebi alguns goles da bebida para retomar o fôlego, como que para "amaciar" as palavras que me sairiam da boca.
- Em 2006, os gaúchos elegeram uma paulista para governar o nosso Estado. Esta mulher usava um lenço para saborear o chimarrão. Este gesto, que em princípio causou estranheza em todo o pampa, passou a ser adotado pela classe média e logo, logo se espraiou por todas as classes, até se incorporar à nossa tradição...
O menino, de olhos arregalados, parecia não entender como uma "estrangeira" poderia ter sido a responsável por mudar, em tão pouco tempo, uma tradição arraigada na cultura da sua terra e cultivada com tanto orgulho pelo seu avô.
- Me conte mais uma pouco sobre essa mulher, vovô?
Refleti um pouco e decidi ser um pouco mais cuidadoso com as palavras
- Bom, ela era paulista, a primeira mulher e a primeira paulista a eleger-se governadora desse nosso maravilhoso Estado. No começo, ela se enrolou um pouco com nossas tradições, a ponto de afirmar, em rede nacional de televisão, que "pantalha" era uma vestimenta gaúcha.
O garoto riu. Até ele, na sua tenra idade, não entendia como alguém poderia chamar a estrutura que compõe os abajures de vestimenta? Também ri, mas continuei.
- Durante a campanha eleitoral, esta mulher negava com veemência a proposta de aumentar impostos para enfrentar a crise financeira do Estado. À época, ela qualificava essa idéia como própria de um "velho jeito de governar". Porém, depois de eleita, a primeira decisão dela, mesmo antes de assumir o cargo de governadora, foi propor o aumento de impostos. Graças a Deus, os deputados derrotaram a intenção da governadora e vetaram-lhe a iniciativa. Mas a mulher, destemida, não descansou. Resolveu reduzir em 30% os investimentos em todas as secretarias. Não conseguiu pagar os servidores públicos em dia. Também vendeu nosso Banco Estatal, que em governos anteriores fora tratado como "orgulho dos gaúchos". Esta mulher decepcionou a todos os gaúchos que lhe haviam depositado sua confiança. Mas isso não é tudo. Depois, ela...
- Amor! Acorda! Acorda que está na hora!
Fui surpreendido pela mão de minha mulher que me sacudia e me dava leves tapinhas no ombro... Então, tudo não passara de um sonho? Cadê a criança que me chamava de avô? E o chimarrão que eu estava a saborear agora mesmo? Estou confuso... Toco no meu rosto e vejo que minha pele ainda é relativamente lisa. Olho para as mãos. Sim, são as mesmas que me acompanham há 26 anos.
Meio tonto, ergo-me da cama e tateio no criado-mudo em busca do meu telefone celular. Encontrei-o... Ufa! Que alívio! Ainda estamos em 2007. Era apenas um pesadelo...
Ou não?
- Goool! – grita o pequeno, entusiasmado. Mais uma vez, a bola acertara bem no cantinho da minha goleira improvisada – Está 10 a um, vovô! – vibra o garoto orgulhoso por estar derrotando o ancião da família. Eu, no alto dos meus 65 anos, divirto-me mas me sinto cansado devido ao esforço e às limitações físicas impostas pela idade "avançada". Mas não perco o rebolado e tento acertar a goleira dele mais uma vez.
- Isso não vai ficar assim, vou empatar! Pega essa!
Putz... meu chute foi totalmente impreciso e fraco. Algum tempo depois, a vantagem do meu neto só aumentara. Definitivamente, era chegada a hora de dar um tempo no jogo. - Vamos sentar um "bocadinho"? Vovô cansou... – sugiro.
O guri põe a bola embaixo do braço um pouco contrariado, talvez pensando que, dando uma trégua ao "humilhado" avô, o jogo pudesse recomeçar logo, logo. Sentou-se ao meu lado em silêncio, enquanto eu tentava recuperar-me do esforço, totalmente ofegante. Saquei da sacola os "apetrechos" do meu inseparável chimarrão e comecei a sorver, devagarinho, curtindo o líquido quente que saciava a minha sede e, aos poucos, recompunha minha sanidade física. Ficamos ali, em silêncio por alguns deliciosos instantes, quando o guri, com sua característica curiosidade, perguntou:
- Vovô, de onde veio o chimarrão?
A pergunta me surpreendera e, após pensar um pouco, recuperei, lá do baú da memória, a lenda do chimarrão. Comecei a narrar-lhe a história que eu ouvira há muitos anos atrás.
- A lenda da Erva–Mate conta que um velho guerreiro guarani vivia triste em sua cabana, pois já não podia mais sair para as guerras, nem mesmo para caçar e pescar. Ele vivia sozinho com sua linda filha, Yari, que o tratava com muito carinho. Yari jamais casara pois fazia questão de permanecer na casa do pai para melhor cuidá-lo e dedicar-lhe todas os cuidados e atenção.
Dei uma pausa nas palavras e, com inevitável satisfação, percebi que meu neto estava completamente compenetrado em cada sílaba que eu pronunciava. Crianças são assim, adoram ouvir uma história nova... Mais um gole de chimarrão e retomei, com entusiasmo, o relato que absorvia todos os sentidos da minha platéia solitária...
- Um dia, Yari e seu pai receberam a visita de um viajante que passava por aquelas bandas. Como era de costume, acolheram o andarilho para um pernoite na sua humilde cabana, dispensando a ele os melhores cuidados. A jovem cantou para que o visitante adormecesse e tivesse um sono tranqüilo, entoando um canto suave e triste. Ao amanhecer, o viajante confessou ser enviado de Tupã e disse que, para retribuir-lhes a hospitalidade, atenderia a qualquer desejo dos dois, mesmo o mais remoto. O velho guerreiro, sabendo que sua jovem filha não se casara para não abandoná-lo, pediu que lhe fossem devolvidas as forças, para que Yari se tornasse livre. O mensageiro de Tupã entregou ao velho um galho de árvore de Caá, ensinando-lhe a preparar uma infusão que lhe devolveria todo o vigor. Transformou, ainda, Yari na deusa dos ervais e protetora da raça Guarani, sendo chamada de Caá-Yari, a deusa da erva-mate. E assim, a erva foi usada por todos os guerreiros da tribo, tornando-os mais fortes e valentes. Quando os espanhóis por aqui chegaram, encontraram os índios guaranis dóceis e receptivos, já então utilizando uma bebida que sorviam em cabaças por meio de um canudo, preparada com folhas de uma árvore nativa da região – chamada cáa – dizendo que esta lhes havia sido dada pelo deus Tupã. De imediato, os espanhóis adquiriram o hábito e passaram a tomar o chimarrão, desde os soldados até os oficiais, sem distinção de classes sociais. E aqui, no Rio Grande do Sul, o tradicional chimarrão tornou-se um salutar hábito, símbolo da hospitalidade do gaúcho, que o oferece sempre a qualquer visitante. É bebido assim – mostrei-lhe a cuia – um uma cuia onde depositamos um pouco de erva-mate já moída e de onde sorvemos o líquido (água quente sem ferver), através de uma bomba de metal.
- Más vovô, isso se toma assim, segurando um guardanapo?
Interrompeu o garoto, com cara curiosa.
- Não, meu filho. Isso é uma outra história...
Enchi mais uma vez a cuia e, antes de retomar o relato, bebi alguns goles da bebida para retomar o fôlego, como que para "amaciar" as palavras que me sairiam da boca.
- Em 2006, os gaúchos elegeram uma paulista para governar o nosso Estado. Esta mulher usava um lenço para saborear o chimarrão. Este gesto, que em princípio causou estranheza em todo o pampa, passou a ser adotado pela classe média e logo, logo se espraiou por todas as classes, até se incorporar à nossa tradição...
O menino, de olhos arregalados, parecia não entender como uma "estrangeira" poderia ter sido a responsável por mudar, em tão pouco tempo, uma tradição arraigada na cultura da sua terra e cultivada com tanto orgulho pelo seu avô.
- Me conte mais uma pouco sobre essa mulher, vovô?
Refleti um pouco e decidi ser um pouco mais cuidadoso com as palavras
- Bom, ela era paulista, a primeira mulher e a primeira paulista a eleger-se governadora desse nosso maravilhoso Estado. No começo, ela se enrolou um pouco com nossas tradições, a ponto de afirmar, em rede nacional de televisão, que "pantalha" era uma vestimenta gaúcha.
O garoto riu. Até ele, na sua tenra idade, não entendia como alguém poderia chamar a estrutura que compõe os abajures de vestimenta? Também ri, mas continuei.
- Durante a campanha eleitoral, esta mulher negava com veemência a proposta de aumentar impostos para enfrentar a crise financeira do Estado. À época, ela qualificava essa idéia como própria de um "velho jeito de governar". Porém, depois de eleita, a primeira decisão dela, mesmo antes de assumir o cargo de governadora, foi propor o aumento de impostos. Graças a Deus, os deputados derrotaram a intenção da governadora e vetaram-lhe a iniciativa. Mas a mulher, destemida, não descansou. Resolveu reduzir em 30% os investimentos em todas as secretarias. Não conseguiu pagar os servidores públicos em dia. Também vendeu nosso Banco Estatal, que em governos anteriores fora tratado como "orgulho dos gaúchos". Esta mulher decepcionou a todos os gaúchos que lhe haviam depositado sua confiança. Mas isso não é tudo. Depois, ela...
- Amor! Acorda! Acorda que está na hora!
Fui surpreendido pela mão de minha mulher que me sacudia e me dava leves tapinhas no ombro... Então, tudo não passara de um sonho? Cadê a criança que me chamava de avô? E o chimarrão que eu estava a saborear agora mesmo? Estou confuso... Toco no meu rosto e vejo que minha pele ainda é relativamente lisa. Olho para as mãos. Sim, são as mesmas que me acompanham há 26 anos.
Meio tonto, ergo-me da cama e tateio no criado-mudo em busca do meu telefone celular. Encontrei-o... Ufa! Que alívio! Ainda estamos em 2007. Era apenas um pesadelo...
Ou não?
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