Twitter

quinta-feira, junho 14

A GUERRA REQUENTADA

por Antonio Luiz M. C. Costa - Carta Capital

Embora o G-8 seja o fórum dos maiores poderes reais do planeta – mais de dois terços do PIB (segundo a taxa de câmbio) e 97% das armas nucleares do mundo – e suas iniciativas não sejam embaraçadas por estruturas burocráticas ou votações complexas, suas reuniões geralmente foram mornas, rotineiras e aparentemente amigáveis.
Salvo algumas medidas de coordenação contra o terrorismo e a pedofilia, suas resoluções desde 1997, quando a incorporação da Rússia deu ao fórum a configuração atual (que soma nove membros com a União Européia), não foram muito além de promessas vazias de ajudar países pobres, reduzir barreiras comerciais e, nos últimos anos, também de pensar mais seriamente no aquecimento global. Abafada pela malfadada incursão israelense no Líbano, a reunião de 2006, em São Petersburgo (Rússia), mal foi notada.
Desta vez, porém, criou-se um clima de tensão e real expectativa em torno da reunião no balneário de Heiligendamm – perto de Rostock, na antiga Alemanha Oriental. Não pelo ativismo dos críticos da globalização, embora estes estejam recuperando o ímpeto perdido com o 11 de setembro e tenham dado trabalho aos 16 mil integrantes das forças de segurança mobilizadas para mantê-los a distância. As razões mais fortes para ansiedade estão nos crescentes desentendimentos entre as potências nucleares sobre questões cada vez mais difíceis de ignorar ou adiar.
Em 17 de janeiro, os especialistas do Boletim de Cientistas Atômicos adiantaram em 2 minutos – até 5 para meia-noite, a hora mais adiantada desde o fim da Guerra Fria – o “relógio do fim do mundo”, que, desde 1947, procura medir o risco de extinção da humanidade.
Agora, as razões do ajuste não estavam nas tensões entre Washington e Moscou, mas nas ambições nucleares de nações periféricas como Irã e Coréia do Norte, nos riscos de tráfico nuclear e, pela primeira vez, também a ameaça do aquecimento global. Esta, segundo o físico britânico Stephen Hawking, porta-voz da publicação, representa agora uma ameaça maior que o terrorismo.
Cinco meses depois, há motivos para pensar que o Boletim vai mover o ponteiro para ainda mais perto da vertical. Não só os novos problemas continuam sem solução à vista, como os velhos voltam com roupagem diferente.
O presidente russo Vladimir Putin preparou-se para a reunião do G-8 com um exercício não visto em seu país há algum tempo: o teste de um novo míssil balístico intercontinental. Substituto dos mísseis RS-18 e RS-20 (lançados em 1967 e 1974 e capazes de conduzir seis e dez ogivas, respectivamente), o RS-24 foi apresentado como capaz não só de transportar dez ogivas, como também de alterar sua altitude e curso em vôo hipersônico, para evadir defesas antimísseis. O Kremlin esclareceu tratar-se de uma resposta à instalação desse tipo de defesa pelos EUA na Europa Oriental e ameaçou transformá-la em mais um alvo de seus mísseis, caso o Pentágono prossiga com seus planos.
Washington quer dez antimísseis interceptadores na Polônia, combinados a uma estação de radar na República Tcheca. O pretexto é proteger os aliados de um eventual ataque nuclear do Irã ou da Coréia do Norte. Teerã ainda está muito longe dessa capacidade. Se esta existisse e os aiatolás tivessem algum interesse concebível em atacar a Europa, o local adequado para a defesa seria a Turquia, membro tradicional da Otan. Quanto à Coréia do Norte, é evidente que, caso tivesse mísseis com esse alcance, os apontaria na direção oposta. O desafio é tão claro quanto o de Kruchev ao instalar mísseis em Cuba, em 1962 – o momento em que o mundo esteve mais perto de uma guerra nuclear.
Dez antimísseis parecem pouco ante os 927 mísseis intercontinentais em poder de Putin – sem falar de milhares de mísseis nucleares de menor alcance –, mas a Rússia não tem por que encorajar um precedente. Além disso, a partir da era Bush júnior, os russos precisam levar mais a sério a possibilidade de um ataque “preventivo” dos EUA a seus silos, que deixaria aos russos sobreviventes poucas dezenas de mísseis para retaliação.
No complicado pôquer da dissuasão nuclear, dez antimísseis podem de fato fazer diferença – mesmo que seu verdadeiro propósito talvez seja o de mero prêmio de consolação para a Boeing e outros financiadores da campanha republicana desapontados com a postergação indefinida das ambições originalmente muito mais amplas do programa Guerra nas Estrelas.
Os governos de Varsóvia e Praga, ansiosos por se atrelar mais solidamente à carruagem de Washington e afastar o risco de retornarem ao rebanho de Moscou, receberam a iniciativa estadunidense com entusiasmo. Já a seus povos, o risco de se tornarem alvos preferenciais de um eventual choque entre potências parece bem menos atraente: pesquisas de opinião deste ano indicaram que 57% dos poloneses e 68% dos tchecos se opõem à instalação. Muito compreensível, especialmente considerando-se que a eficácia dessas armas é incerta mesmo contra mísseis baseados no velho Scud (como os usados por Saddam na primeira guerra do Golfo), quanto mais contra mísseis intercontinentais avançados. Muitos dos testes reportados fracassaram, inclusive o último, em 29 de maio.
Por lamentável que seja o autoritarismo de Moscou em sua política interna e nas suas relações com vizinhos, a deterioração nas relações com o Ocidente deve-se em maior grau à obsessão dos EUA com isolar ou neutralizar qualquer concorrência, diplomática ou militar, à sua hegemonia unilateral. Mesmo o ex-líder Mikhail Gorbachev, crítico de Putin, acusa a embriaguez de Washington com o sucesso no novo jogo iniciado após o fim da Guerra Fria, o do “novo império”.
Quando da invasão do Iraque, França e Alemanha esboçaram alinhar-se à Rússia para conter o unilateralismo estadunidense – e esta, por sua vez, somou-se ao Protocolo de Kyoto, passo decisivo para fazê-lo sair do papel. Entretanto, Chirac e Schroeder deixaram o governo, o fracasso da União Européia em aprovar seu projeto de constituição minou suas pretensões a uma política externa ativa e própria, enquanto seus interesses se distanciavam dos russos graças à disputa pelo preço do gás e por influência na Europa Oriental.
Conseqüentemente, a Rússia se afasta da parceria com os ricos com a qual lhe acenaram na era Clinton e tende a procurar aliados entre colegas exportadores de energia, tais como o Irã e a Venezuela. Ao mesmo tempo, o peso ainda enorme do G-8 na economia global começa a diminuir devido ao crescimento acelerado de alguns países emergentes, principalmente a China e a Índia. Apesar de estarem fora do clube, ambas as nações já são economicamente mais relevantes que membros tradicionais do grupo e também já se impuseram ao mundo como potências nucleares.
Em termos práticos, mesmo um difícil consenso do G-8 já não teria peso suficiente para ditar decisões ao mundo em muitos aspectos relevantes. Por essa razão, desde 2005, cinco grandes nações representativas dos países periféricos – China, Índia, Brasil, México e África do Sul – têm sido convidadas a conversar, configurando o chamado O-5 (“O” de outreach, extensão). Em termos de paridade de poder aquisitivo, o peso econômico dessas nações tem crescido na mesma proporção em que o do G-8 tem diminuído: em 1996, representavam 21% do PIB global ante 49% das oito potências, e hoje a proporção é de 42% para 28%.
O diálogo, entretanto, tem frustrado a principal expectativa dos europeus, principalmente da Alemanha de Angela Merkel – a saber, a aceitação pelo O-5 de um compromisso para limitar o aquecimento global a 2 graus, o que implica emissões globais em 50% até 2050. A China – que a partir do ano que vem deve tirar dos EUA o papel de maior emissor de gases de efeito estufa, assumiu também o papel antes reservado aos republicanos de Washington, o de pôr em dúvida as conclusões científicas sobre o aquecimento global.
Dentro do próprio G-8, Bush júnior insiste em um laissez-faire que inviabiliza uma decisão séria. Embora em fevereiro seu governo tenha abandonado o anterior ceticismo oficial sobre o aquecimento global, no Painel Intergovernamental das Alterações Climáticas da ONU, levou ao G-8 uma proposta de “redução voluntária” de emissões, independentemente do Protocolo de Kyoto e de resoluções da ONU, cujo objetivo evidente era esvaziar os foros multilaterais e os avanços que obtiveram. Foi devidamente criticado pelo presidente Lula na entrevista ao jornal britânico Guardian de 1º de junho. Mesmo a China, a menos interessada em metas compulsórias, recusou a iniciativa de Washington como substituição do Protocolo.
Por outro lado, como outros países periféricos, a China recusa-se a aceitar metas de redução proporcionais às dos países ricos, com o argumento bastante razoável de que seu padrão de vida ainda é muito inferior e sua produção de poluentes per capita é cinco vezes menor que a dos EUA. Também exige ajuda financeira e tecnológica maciça para possibilitar que ela e outros países em vias de industrialização se desenvolvam sem agravar o problema ambiental, compromisso que os desenvolvidos estão longe de assumir.
A postura pode ser justa, mas o resultado prático é um impasse que poderá se prolongar até ser tarde demais para limitar as conseqüências provavelmente catastróficas do aquecimento global. Enquanto isso, acirra-se a disputa sobre fontes de energia e água cada vez mais escassas em relação ao crescimento acelerado da demanda global. Da superarmada Rússia à frágil Bolívia, países com reservas energéticas lutam para maximizar o valor de seus recursos e empregá-los em seu próprio crescimento econômico e industrial.
Se apagões energéticos e hídricos causados pela escassez objetiva não bastarem para agravar tensões internacionais, haverá o problema politicamente ainda mais complicado de dividir e administrar mundialmente as cotas de emissão de gases, potencialmente equivalentes à autorização ou proibição do crescimento econômico. E muitos cientistas não vêem qualquer alternativa prática e compatível com o controle do aquecimento global além de recorrer à energia nuclear em escala sem precedentes, multiplicando oportunidades para disseminação de armas nucleares, entre nações menores e mesmo grupos terroristas.
O mundo nunca precisou tanto de alguma espécie de governança global – e o G-8 nunca esteve tão distante do consenso necessário para formular uma proposta, quanto mais para torná-la aceitável aos novos poderes emergentes. Os EUA, a Rússia, a Europa e os novos países industrializados formam blocos de interesses aparentemente inconciliáveis: um busca hegemonia absoluta em todos os aspectos, o segundo tenta controlar a oferta da energia, o terceiro insiste em um status quo que já não consegue defender e o quarto em conquistar seu lugar ao sol. É uma receita não só para ressuscitar a Guerra Fria como para aquecê-la de maneira tão perigosa quanto ocorreu com a “paz armada” que antecedeu as guerras mundiais.

Nenhum comentário: